"Mulher,
onde estão aqueles que te acusam?
Nem eu te
condeno. Vá e não peques mais." - Jo 8.10,11
Gostaria de
ver o que essa mulher fez em seguida, saber quais foram seus pensamentos... Ela
deve ter saído dali meio atordoada, afinal, quase fora apedrejada! Deve ter
ficado um tempo tentando entender o que havia acontecido, deve ter levado um
tempo até cair a ficha... E quando ela caiu, ela deve ter chorado... Sim, ela
chorou. Chorou um choro diferente, que a lavou de dentro pra fora... Nesse
choro tinham raivas, arrependimentos, renúncias, sonhos ressuscitando, feridas
sendo tratadas, uma nova imagem de si mesma estava nascendo... Ela percebeu que
alguém (finalmente!) havia enxergado ela por dentro, além de toda capa
exterior. Alguém viu que ela não era perfeita, mas a amou. Nesse momento, ela
foi inundada por um prazer, uma alegria, uma satisfação que ela nunca havia
sentido. Era a alegria de ser amada sem merecer, de graça, um favor que ela não
merecia. Nesse momento, ela tem vontade de rir e chorar ao mesmo tempo... Se
sente meio louca, mas deixa... Dá vazão... Afinal, esse dia não está muito normal
mesmo. Ela chora, ri, e se inunda de alegria, de amor... Ela se deixa levar, se
deixa ser perdoada, aceita ser amada por um homem que não quer seu corpo, que
nem olha pra ela direito, que não está interessado na sua aparência... Nesse
momento ela olha pra si mesma e percebe o quão está suja e decide tomar banho.
Mas esse banho não vai lavar apenas a poeira daquele chão onde a jogaram pra
ser apedrejada, esse banho lava a sujeira do pecado cometido. Nessa água que
vai escorrendo também está indo uma vida antiga, suja e rejeitada, está
nascendo uma nova mulher. Quando ela vai se vestir, precisa procurar uma roupa
diferente das que vem usando ultimamente... Precisa revirar suas roupas e
encontra, lá no fundo, as roupas que usava quando ainda se amava. E é uma
dessas que ela coloca agora. As outras, que usava pra disfarçar suas tristezas,
que usava para atrair olhares, ela junta tudo e quer jogar fora... Ela não
precisa mais dessas. Também não sente necessidade de passar lápis nos olhos,
não sente necessidade do vermelho nos lábios... Ela quer sair assim, de cara
lavada, porque sua alma está lavada. Ela quer jogar tudo isso fora, junto com
todos os presentes que recebeu dos homens com os quais se evolvera. Começa a
recolher, um por um: colares, brincos, perfumes.... E ela quer jogar tudo
fora... Ela vai recolhendo, coisa por coisa, e encontra um vaso de perfume,
muito caro. Esse não foi presente. Ela havia guardado muito dinheiro e ela
mesmo comprou. Ela mesma deu pra si. Afinal, ela merecia. Ela comprou aquele
vaso pra mostrar pra si mesma que conseguia, que podia ter do melhor, que podia
conseguir, que não precisava de homem nenhum, que ela conseguia. Ela olha pra
esse vaso e seu coração aperta. Ele ainda tem valor, mas parece que não deveria
ter. Ela não entende o que está sentindo... Ela pensa que talvez seja melhor
jogar ele fora também, mas ela não consegue. Ele é importante... Ele não é como
os outros presentes. Nesse vaso parece que não tem apenas nardo puro. Tem seu
orgulho, sua força.... Parece que esse vaso guarda todo seu esforço, toda sua
luta... E jogar ele fora parece que é se desfazer de si mesma, de quem ela é...
Mas ela sente que ele não pertence a essa vida nova que está nascendo e coloca
ele junto com tudo que vai pro lixo.
E vai pra rua.
Vai jogar fora a vida velha porque ela quer viver a vida nova. Quer jogar fora
a vida de amantes porque agora ela é amada (hahaha - parece mesmo que sua alma
sorriu). Ela vai, e tem prazer de jogar um por um no lixo, mas, quando chega no
vaso de alabastro, que havia ficado por último, ela não consegue... Ela decide,
então, dar pra alguém. Dar de presente, afinal, é algo muito valioso pra ir pro
lixo. Ela segue caminhando, procurando alguém para dar aquele presente tão
valioso... E, enquanto passa pela rua, olha pela janela de uma casa, meio sem
querer, e vê Ele. Seu corpo gela e aquece ao mesmo tempo. Ela não pode
acreditar que é Ele. Ele está sorrindo, conversando com outros homens e, quando
ela percebe, ela está parada na janela, observando... Ela quer ir lá,
agradecer, olhar mais de perto, só estar, mas não pode, não foi convidada... E
ali estão alguns homens que ela reconhece, reconhece da sua vida antiga, e eles
não vão permitir que ela entre ali. Ela tenta ir embora, mas não consegue...
Ela quer estar perto dele mais uma vez... Eles estão se preparando para
jantar... E se expulsarem ela? E se ameaçarem apedrejá-la novamente? E se,
agora, eles se sentirem seguros pra atirarem a primeira pedra? Não, acho melhor
ir embora... Mas ela não quer ir embora e, quando vê, já está na porta de
entrada. Ela não bate, não pede licença, ela entra. Agora ela está diante
deles, eles estão à mesa, seu coração está batendo forte, ela está ali parada
e, de repente, ela vê os pés dele... Aqueles pés eram a única visão que ela
tinha enquanto estava ali no chão, tremendo, esperando a primeira pedrada. Ah,
aqueles pés...! Aqueles eram os pés do perdão, do amor, da aceitação... Ela
precisa estar mais perto daqueles pés. Mas dessa vez ninguém a jogou ali, ela
se ajoelha e toca neles... Mais uma vez aquele choro a invade... Mas agora, um
choro de gratidão... Parece que todo aquele amor que a inundou agora está
transbordando e ela deixa jorrar... Ela não apenas toca, mas começa a beijar
aqueles pés... Agora ela não tem mais medo, ela sabe que ninguém pode lhe fazer
mal, ela encontrou abrigo ali, aos pés. Ela percebe então que os pés dele estão
encharcados de lágrimas, saliva, e fica nervosa, não quer que ele tire os pés
dali, não quer que ele se chateie com ela... Mas ela não tem nada às mãos...
Mas ela tem seus cabelos... Os cabelos que ela prendera gentilmente num coque,
que, pra Ele, ela desfaz. Ela desenrola seus cabelos e começa a enxugar aqueles
pés. Ela enxuga... E enquanto enxuga seus olhos passam, sem querer (e ela
realmente não queria) seus olhos passam pelo vaso de alabastro que ela deixou
ali quando se ajoelhou. Ela pensa que poderia dar pra ele. Mas ela não quer...
Ela já se humilhou tanto, ela já está ajoelhada, todos estão olhando pra ela...
Mas não importa! Esses pés merecem tudo. Esses pés, que ela olhava à beira da
morte, ela agora quer perfumar, quer que o seu melhor esteja sobre eles... Ela
quebra o vaso, e um perfume delicioso invade todo o ambiente. Ela derrama
aquele líquido precioso sobre aqueles pés... Precioso não apenas porque levou
todas as suas economias. Naquele líquido que está sendo derramado também o seu
orgulho, sua autossuficiência... Todo seu eu antigo, tudo que ela levava como
valor próprio, ela derrama naqueles pés. Quando o líquido acaba, quando ela
termina de derramar tudo, ela sente que está completa. Que incoerente, ela
pensa. Eu não tenho mais nada e parece que tenho tudo! Eu nunca me humilhei
tanto e nunca me senti tão honrada! Ela se levanta. Aqueles homens olhando pra
ela... Ela sabe bem o que estão pensando, mas não importa. Ela sabe o que o
dono daqueles pés pensa sobre ela e é isso que ela vai pensar também. E ela
simplesmente sai. Nova. Renovada. Perdoada. Sai lavada, transformada, digna. E
o que ela vai fazer agora? Ela vai viver!